quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Da não gravidez

Este deveria ser um texto sobre uma gravidez feliz, planeada e vivida em pleno.

Mas não.

Este é um texto sobre um aborto.

Estava a dois dias de perfazer as doze semanas de gravidez. O chamado patamar de segurança. Não chegou lá. O meu Marshmallow foi embora. Não resistiu. Não sobreviveu.

A notícia foi-me dada num gabinete frio por uma médica que não conheço. Tocou-me na perna e dizendo um nome que não é o meu disse "lamento, mas é uma gravidez não evolutiva".

Senti uma vertigem. Tiraram-me o chão. Abracei-me ao Super Gato, meu pilar e minha rocha, e ambos chorámos pelo filho que só nos foi dado por um bocadinho. Que nunca vamos conhecer. Que nos foi tirado.

Toda eu era dor. 

Partida, dilacerada, em chaga.

O meu bebé....

Como é que pode ser? Eu não tinha planeado isto assim. Não era suposto. Mas afinal eu não controlo tudo? Senti-me atingida no meu complexo de Deus. Uma chapada de humildade. Zás!

E senti-me culpada. Não pelo que aconteceu, que isso terá sido puramente cromossomático.

Culpada porque me irritei tantas vezes por não poder comer um chocolate ou beber um copo de vinho. Porque já tinha os pés a inchar. Porque estava sempre cheia de sono.

Esqueci-me que era uma dádiva e não uma cruz. A verdadeira dádiva que estupidamente tomei por garantida.

E duas imagens assombravam-me. Quase em slow motion sucediam-se uma à outra.

Os mocassins que já tinha lhe comprado e que estavam em cima da mesa da sala. À espera.

A foto da CLSM de vestido branco de Verão a segurar uma ardósia onde se lia "fui promovida a mana mais velha". Ela não sabia ainda e nunca chegou a saber. Mas era como se lhe tivesse tirado isso. Eu. Que a tivesse privado de algo que ela nem sabia que queria. 

E lembrava-me de uma conversa que tive com o Marshmallow. Estava a vestir-me e pousei a mão na barriga. Nesse momento dissiparam-se todas as dúvidas que tive - porque tive - se seria possível amar outro Ser como amo a minha filha. E disse-lhe porque senti, soube nas minhas entranhas, que ele seria tão amado como a mana.

Doeu muito perdê-lo. Perder a ideia dele, perder o colo que lhe ia dar, perder o seu cheiro, o olhar, o primeiro sorriso, as suas mãozinhas pequeninas a agarrar as minhas...Doeu muito perdê-lo.

Achei que nunca mais recuperaria. Quando acordava, naqueles milésimos de segundo antes de ganhar consciência, era plenamente feliz. Foi um pesadelo. Era como se tivesse que viver e sentir tudo outra vez, quando percebia que não o era.

E chorei, chorei muito. 

E li, li muito. A minha forma de lidar com isso foi tentar perceber o porquê. 

E ouvi, ouvi muito. Tantas pessoas que já tinham passado por isso. Há sempre alguém que passou, que tem uma irmã, uma prima, uma mãe a quem isso aconteceu. E assim tem de ser. Uma em cada cinco gravidezes tem este desfecho. Mas do alto da minha arrogância sempre soube que isso a mim não aconteceria. Zás!

E o tempo foi passando e cada vez chorei, li e ouvi menos.

Apoiei-me na minha força, na do Super Gato, na dos meus pais, família e amigos maravilhosos que tenho. Que me ouviram, consolaram e mimaram.

E suguei até ao tutano o meu bálsamo, as minhas vitaminas e o meu Prozac. A Maria do Carmo obrigou-me a agir, a reagir, a sorrir e, com tempo, a rir.

A eles, tudo.

Já passou mais de um mês desde o consultório frio e da médica que não conheço.

A ferida já fechou. A cicatriz fica. 

Quero que fique.

Porque tu foste parte de mim. Sempre serás, meu Marshmallow.